PENSAMENTO MONETARISTA
A América Latina No Olho Do Furacão
ROBERTO BERGOCI/SP
O agravamento da crise orgânica do capital na raiz da nova onda golpista em nosso continente.
A América Latina no olho do furacão: o agravamento da crise orgânica do capital na raiz da nova onda golpista em nosso continente.
Toda análise mais profunda, que envolva a totalidade do modo de produção capitalista, tem chegado a conclusões de que, tal regime entrou num longo período de declínio, crises constantes e regresso civilizacional. A crise profunda que hora vivenciamos na América Latina é um momento dessa totalidade, manifesta em uma de suas cadeias mais débeis, que é justamente o capitalismo dependente. Sem uma compreensão desse fenômeno em seu conjunto, fica impossível entendermos o que de fato nos atinge em Nossa América.
A crise contemporânea que abala a sociedade burguesa em seu conjunto, possuí um caráter dialético, pluri causal, como nos ensina Marx em seus três livros que compõem O Capital: neste processo, vemos a combinação e ação recíproca influir uns sobre os outros, os problemas estruturais que envolvem o modo de produção capitalista, como superprodução, queda das taxas de lucro, sobreacumulação, financeirização, etc; em suma, a manifestação da crise de valorização do capital em sua organicidade. Este processo se torna ainda mais dramático, sobretudo pelo fato de que, uma das características do capitalismo atual é ter entrado numa fase de completo amadurecimento e mundialização, onde deslocou já para quase toda parte do globo terrestre suas contradições, como já teorizado por Rosa Luxemburgo em seu importante livro “Acumulação de Capital”.
Na verdade, como disse o economista marxista Robert Kurz em um de seus escritos: “Desde meados dos anos 1970 se multiplicam os sinais de uma séria crise da reprodução do sistema mundial produtor de mercadorias. Taxas declinantes ou estagnadas; desemprego em massa e ‘estrutural’ crescentemente desacoplado dos ciclos conjunturais tanto nos países desenvolvidos da OCDE quanto na periferia do mercado mundial [...] Tudo isso, por sua vez, é superposto pela cada vez mais ameaçadora crise do ecossistema em escala planetária: do “buraco na camada de ozônio” à destruição das florestas tropicais da África e da Amazônia, da propagação das zonas desérticas à contaminação das cadeias alimentares, da destruição dos sistemas ecológicos internos como os do Mar do Norte, dos Alpes e do Mar Mediterrâneo até a irreversível contaminação dos solos e da água potável etc.” (Robert Kurz, “A Crise do Valor de Troca”). Dessa forma, em concordância com outros importantes autores marxistas da contemporaneidade, podemos perceber que a atual crise, ao contrário das anteriores correspondentes ao capitalismo em sua fase de ascenso, atinge a totalidade do regime burguês.
O pensador revolucionário István Mészáros ensina que: “[...] a crise do capital que experimentamos hoje é fundamentalmente uma crise estrutural. Assim, não há nada especial em associar-se capital a crise. Pelo contrário, crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de existência do capital: são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação.”(István Mészáros, “Para além do Capital”). E um pouco mais à frente Mészáros explicita a singularidade da atual crise que, segundo ele, possui um caráter universalizante, atingindo todas as esferas da reprodução social.
Pedindo já perdão ao leitor pelas longas citações-- que ao nosso juízo são essenciais para uma melhor compreensão do que ocorre na América Latina, tema de nosso texto-- segue Mészáros: “A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos principais:
(1) Seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção[...];
(2) Seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises do passado);
(3) Sua escala de tempo é extensa, continua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital;
(4) Em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ‘administração da crise’ e no ‘deslocamento’ mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia.”(Idem).
Pensamos que no geral, este seja o caldo de cultura do atual período de instabilidade e golpes de Estado envolvendo praticamente todos os países latinoamericanos. Isso não exclui, pelo contrário, se combina dialeticamente com as características próprias dos países em nosso continente, marcados pela dependência e subdesenvolvimento, tornando dessa forma os efeitos da crise orgânica do capitalismo mundial muito mais perversos em nossa Grande pátria.
Instabilidade, golpes e geopolítica do caos: a América Latina e o imperialismo diante da crise estrutural
Nesta nova etapa do capitalismo mundial, marcado pela hegemonia do capital financeiro fictício, o padrão de acumulação que caracteriza os países latinoamericanos é justamente o neoliberalismo. O padrão de acumulação neoliberal é em si, a expressão da crise da produção de mais-valia, como consequência dos processos de intensificação da automação industrial poupadora de trabalho vivo, humano, o que Marx conceitualizou como o aumento da composição orgânica do capital.
O regime neoliberal de acumulação trás em seu bojo, o incrível incremento da superexploração dos trabalhadores, desemprego crônico, recrudescimento da transferência de valor e de riquezas dos países dependentes para as metrópoles imperialistas, pauperismo absoluto das massas trabalhadoras e das classes médias, intensificação da marginalização e “lupenização” de vasta parcela das massas populares e etc.
A América Latina vive entre os fins dos anos 1980 e inicio dos anos 1990, sua primeira onda neoliberal. Na época, o continente estava marcado pela crise da divida, fuga de capitais, desinvestimentos, grande estagnação econômica e etc. O imperialismo estadunidense e toda gangue representante do grande capital financeiro internacional e sua imprensa, aliados das oligarquias latinoamericas, viam sérios riscos quanto às suas condições de lucros e espólio. Nascia assim o famigerado Consenso de Washington, pilar da generalização neoliberal-neocolonial em nossa região.
Este período se caracteriza entre outras coisas pelo assalto descarado aos ativos estatais por parte das multinacionais, através das privatizações. Boa parte das conquistas sócias foram destruídas pela via das “reformas estruturais”: trabalhistas, previdenciárias, etc. Saindo dos sanguinários regimes militares, o continente foi dominado pela ditadura do “deus” mercado, onde nossos povos eram literalmente imolados nesse altar da barbárie.
Não tardou para que as revoltas operárias e populares colocassem um duro freio a esse genocídio social. Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador entre outros países, foram sacudidos por verdadeiros processos de insurreições e\ou explosões sociais, derrotando duramente os governos títeres da Casa Branca. Na sequencia, o continente hegemonizado politicamente pelos governos nacionalistas burgueses, colocaram certo freio nas políticas neoliberais. O crescimento da economia mundial no período, sobretudo a ascensão da China como importante ator e importador de matérias primas, estimulou a valorização dos produtos agrominerais, importante base de exportação de nossas economias dependentes.
Tal conjuntura “favorável”, permitiu relativa melhora nas contas externas de nossos países, transformados em importantes concessões aos povos trabalhadores e a pequena burguesia. No entanto, os pilares da dependência e do subdesenvolvimento jamais foram tocados pelos chamados governos “progressistas”. A submissão aos imperativos da divisão mundial do trabalho, a superexploração da força de trabalho, a crônica transferência de valor e riqueza para os países imperialistas não foram revertidos, apenas “aliviados”. Em suma, as relações de exploração e opressão se mantiveram com algum freio, mas em essência continuamos sendo países dependentes.
A América do Sul em particular, se distanciou relativamente do Consenso de Washington, criando a ALBA, ou fortalecendo outros fóruns de integração regional como o Mercosul. Além disso, houve no período uma importante aproximação de países adversários dos EUA no âmbito geopolítico como Rússia e China, além da constituição dos BRICS e sua relação com a América Latina, que na prática, embora sua moderação, afrontava na região a odiosa hegemonia da Casa Branca.
De forma muito sumária, podemos afirmar que tais fatores, conjugados com a explosão em 2007-2008 de mais um momento da crise estrutural do capitalismo mundial, foram determinantes para por fim ao período que se inicia no começo dos anos 2000 em nosso continente, abrindo assim as condições objetivas para a atual quadra de barbárie em nossos países.
O neocolonialismo imperialista e o Ascenso do fascismo
A América Latina vive atualmente um período de grande turbulência e caos econômico, político e social. A intensificação da crise mundial capitalista é a base do recrudescimento de todas as contradições que envolvem o capitalismo dependente.
A burguesia imperialista e seus sócios menores na America latina tem levado adiante, como resposta à crise, uma verdadeira reestruturação do capitalismo em nosso continente: as formas políticas e jurídicas sustentáculos dos regimes políticos, estão sendo transformadas, “adaptadas” dialeticamente às novas necessidades de acumulação. Podemos dizer que um “novo” patamar de acumulação, baseado num grau muito mais intenso de superexploração e dominação neocolonial, esta sendo gestado em toda a América Latina.
Fatores geopolíticos de primeira ordem também influem neste processo. A esse respeito, o imperialismo leva adiante uma verdadeira batalha de vida ou morte para minar a influencia de Rússia e China na região e estabelecer sua “nova” doutrina Monroe, através da dominação do Spectro Total, como dizia Moniz Bandeira . A luta pela sua hegemonia incontestável, pelo controle ferrenho de fontes de matéria prima e energéticos no continente, além da dominação de importantes reservatórios de água potável, são a base da atual ofensiva imperialista contra a América latina.
Semelhanças com o que fizeram no Oriente Médio não é mera coincidência: Washington tenciona trazer o caos planejado para a nossa região, através das chamadas “guerras hibridas”, ou seja, a intensificação de conflitos irregulares e indiretos, como tem demonstrado o importante estrategista Andrew Korybko. O papel desempenhado por exemplo, das igrejas neopentecostais nos atuais golpes de Estado no continente, em muito se assemelham as atuações fundamentalistas dos wahabitas sunitas islâmicos no Oriente Médio.
A militarização da região e o ascenso de agrupamentos fascistas tem sido outro instrumento mobilizado pela Cia e Mossad atualmente. Para levar adiante a espoliação radical de nossos povos, o grande capital imperialista tem de lançar mão de seu reservatório fascista contra as organizações de luta da classe trabalhadora e quebrar a resistência das massas.
A política de roubo e pilhagens do capital financeiro atualmente na America latina, somente pode ser conseguido até suas últimas consequências, através do terrorismo de Estado. O narco Estado colombiano é um modelo que os imperialistas planejam generalizar. O crescimento das milícias bolsonaristas no Brasil, suas relações com o narcotráfico, com as Policias Militares e com o alto Comando das Forças Armadas é sintomático disso. As repressões selvagens contra as massas no Chile e na Bolívia pelos golpistas fascistas, também são exemplos do que pode se generalizar no continente, tendo como caldo de cultura a intensificação da crise de dominação burguesa.
A América Latina Resiste!
Os povos latinoamericanos resistem bravamente aos bárbaros ataques das burguesias nativas e do imperialismo. Os trabalhadores chilenos são um exemplo a ser seguido por nossos povos. O recrudescimento das mobilizações contra o carniceiro Sebastian Piñera tem colocado a burguesia pinochetista chilena contra a parede e promovido uma verdadeira crise de dominação no país.
O povo boliviano, como em outros momentos históricos se levanta contra o golpismo em seu país. Os golpistas lupens, verdadeiros peões da Casa Branca, Jenine Áñez, “Macho” Camacho e toda a quadrilha que usurparam o governo boliviano tem de promover um genocídio de fato contra as massas, para garantir o roubo mais vil à nação em favor do capital estrangeiro.
Equador, Haiti e Argentina, dão mostras das tendências revolucionárias do povo latinoamericano no próximo período.
No Brasil, a classe trabalhadora deste país precisa entrar em cena e por abaixo a gerencia entreguista do bandido miliciano Jair Bolsonaro. Os trabalhadores brasileiros podem desestabilizar o jogo de forças na região e arrastar a America latina para um grande ascenso antiimperialista revolucionário; para isso precisam romper a camisa de força de suas direções hegemônicas, comprometidas com a estabilidade do regime burguês decadente.
De qualquer forma, não há no próximo período, qualquer sinal de recuperação consistente da economia capitalista. Pelo contrário, o que se vê no horizonte é o aprofundamento da crise estrutural e das consequentes turbulências políticas, que podem de fato generalizar na América Latina, a crise de dominação das burguesias nativas, fator que põe na ordem do dia a luta anti imperialista e a revolução socialista continental, em direção a Grande Pátria Latinoamerica Socialista!
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O DÓLAR COMO PODER POLÍTICO
O dólar como poder político – Blog da Boitempo
O DÓLAR COMO PODER POLÍTICO
O dólar como poder político – Blog da Boitempo
Em artigo anterior, mostrou-se que o tarifaço do presidente Donald Trump é um meio para salvar o estatuto internacional do dólar. Com efeito, “salvar o dólar” consistiria em salvar também os superpoderes da “hiperpotência” americana. Isso implica em dizer que o dólar se assenta em bases monetárias e não-monetárias; que, além do seu poder monetário, “outros” poderes de atores e fatores (tais como os do petróleo, FMI, Banco Mundial, BRI, OCDE, OMC, Wall Street etc.) agregam-lhe novos “poderes”.
Sobre o poder do dinheiro, James Carville, estrategista-chefe da campanha eleitoral que elegeu Bill Clinton presidente dos Estados-Unidos, sustenta — com humor — que ele impõe restrições à ação política. Dizia ele: “Antigamente eu achava que, se houvesse reencarnação, eu iria querer voltar como presidente, papa ou craque do beisebol”. Após convivência no ambiente presidencial, acrescenta: “Mas, agora, prefiro voltar como mercado financeiro. Você intimida qualquer um”1. Esses atores participam — e muito — na manutenção do estatuto internacional do dólar; e a fragilidade da economia americana não o afeta em quase nada2. Com efeito, note-se que em 1950 os EUA detinham 62% da produção industrial mundial, contra apenas 18% em 2025. Nesse período, os 80% de divisas mundiais que eram mantidas em dólar passam para 60%, enquanto os fluxos comerciais transnacionais em dólar vão de 70% a 45%. Registra-se, pois, um declínio relativo, mas o dólar continua proeminente.
Daí, se coloca a questão de saber em que consistem os mecanismos que fazem do dólar um ator político. Para sabê-lo, enfoca-se, inicialmente, o contexto monetário que gerou a “cria” e, num segundo momento, esmiuçam-se as bases que sustentam o dólar e seus “poderes”.
Contexto monetário
Antes da Primeira Guerra, até 1914, o ouro teve um papel de referência durante décadas (período conhecido como a era-ouro). O ouro então deixou de ser referência, porque os Estados Nacionais precisaram rodar suas máquinas de impressão de dinheiro para financiar os esforços de guerra. Isso fez com que a quantidade de ouro se tornasse insuficiente perante a quantidade de dinheiro fabricado3. Esse processo atravessa diversas situações. Quais sejam:
A Guerra 1914-1918 ou a primeira expansão monetária: todos os beligerantes, quer dizer, os aliados do Reich e os contrários, financiaram seus esforços de guerra com empréstimos realizados junto aos próprios bancos centrais, o que gerou inflação elevada. Por outro lado, enquanto a Europa se defrontava com essa Guerra, um evento monetário, com consequências globais inéditas em toda a história mundial, acontecia nos EUA: no dia 23 de dezembro de 1913, registrou-se a constituição do Federal Reserve (FED).
A Conferência de 1922 e a Crise de 1929: a primeira teve por objetivo examinar as “reparações de guerra” impostas à Alemanha vencida, e gerou hiperinflação; enquanto a segunda gerou um “crash” de repercussão mundial, com perdas drásticas das moedas. O dólar de hoje representa menos de 1% do seu valor em 1914.
A Guerra 1939-1945 ou a entrada do dólar na cena internacional: é aí que os EUA se tornam a nova liderança mundial na área industrial. O país fornece bens e serviços aos beligerantes, com pagamento em ouro. Acrescente-se a esse montante as 30.000 toneladas de ouro alemãs que foram posteriormente tomadas como butim de guerra. Tudo isso fez com que cerca de 80% do ouro dos demais bancos centrais passasse para as mãos do FED. Emerge, aí, o reinado do dólar, moeda essa que foi considerada “tão boa quanto o ouro”.
O dia 15 de agosto de 1971: diante da quantidade de ouro insuficiente nos cofres do FED para atender a tantas demandas de convertibilidade de dólares em ouro, o Presidente Richard Nixon decidiu, unilateralmente, decretar a inconversibilidade do dólar em ouro. Essa decisão significava que o dólar não era mais convertível em ouro, e que não era mais garantido pelo Estado. Houve um “golpe de Estado monetário”. Uma desconsideração com o “resto do mundo”. Inúmeras razões apontam nessa direção: os EUA decidiram sozinhos mudar as regras do sistema monetário internacional; romperam contrato com “o resto do mundo” unilateralmente ao saírem do campo do Direito para o da força.
O ano de 1973: quando ocorreu um aumento do preço de petróleo, resultando em transferência de recursos fantásticos para os países produtores. Essa transferência, contudo, deixou os EUA com receio de que seus aliados — maiores players internacionais de commodities, em especial do petróleo — pudessem renunciar ao uso do dólar nas transações internacionais. Nesse sentido, foi assinado um acordo com a Arábia Saudita para que todas as suas vendas de petróleo fossem faturadas exclusivamente em dólares. Isso daria lastro real ao dólar para manter seu estatuto internacional. Por outro lado, desde a inconversibilidade do dólar em ouro, está-se vivendo no “não sistema” monetário internacional.
O período 2007-2010: socorro aos bancos para evitar a tal “crise sistêmica” do setor financeiro nos EUA. No caso, houve, literalmente, transferência de valor do setor público ao setor privado. Por outro lado, houve pressões dos EUA sobre a Europa para que elaborasse programas de socorro aos bancos seguindo o “modelito” americano. Entende-se que tudo isso foi feito com a clara evidência de manter o status quo do sistema monetário e financeiro internacional, ou seja, manter a hegemonia internacional do dólar.
É preciso ainda explicitar quais atores e fatores foram mobilizados para a manutenção do dólar. Vejam-se as Bases de apoio ao dólar. Essas bases são diversas e múltiplas. Eis algumas delas:
Criação monetária: Um banco central tem por função ser um serviço público que cumpre o papel de criação monetária, ou seja, atua criando papel-moeda e moeda fiduciária ou eletrônica, moedas essas que são colocadas à disposição do Estado para garantir o bom funcionamento da sua economia. No caso dos EUA, tem-se o FED, que recebeu do governo a incumbência e o poder de criar moeda e vendê-la ao Estado cobrando-lhe juros. Estes representam um “imposto” que a nação paga ao FED para imprimir dinheiro. Esse ente, por sua vez, fixa a taxa de juro, ou seja, o preço da venda do dólar. Quanto maior for a taxa de juros, mais o Estado se endivida e mais o FED e bancos comerciais se enriquecem. Essa operação denomina-se empréstimo (dita também de moeda-crédito). Esse empréstimo exige juros, desembocando no pagamento anual do denominado juro da dívida (dito também serviço da dívida). Este é, na verdade, um tributo pago pelas populações dos EUA e do resto do mundo. Com uma dívida em trilhões, tem-se montantes de juros em bilhões!
Criação dos petrodólares: Na crise do petróleo de 1973, uma massa fenomenal de recursos é transferida aos países da OPEP. Diante disso, o Estado americano ficou receoso de perder o estatuto internacional do dólar, pois não seria viável obrigar todos os países a seguirem as decisões americanas. Foi aí que se escolheu, estrategicamente, o petróleo para que sua comercialização fosse sempre feita em dólar. A escolha não foi feita à toa, até porque o petróleo não é uma commodity qualquer. Tratou-se de uma decisão da maior importância econômica para os EUA, porque o petróleo passou a ser referência real e valiosa para o dólar; referência muito mais importante do que o ouro ou qualquer commodity. Qualquer país que não tenha petróleo (e são mais de 90% dos países do mundo) precisa comprá-lo em dólar. E para ter dólares — já que não pode fabricá-los — vai ser preciso exportar bens e serviços reais, pagos nessa moeda. Por outro lado, os EUA se abastecem de petróleo com papel fabricado à vontade. Tal é a “grandiosa contribuição” econômica, política e estratégica que os países produtores oferecem aos EUA. Essa contribuição ajuda a manter o dólar como moeda hegemônica. Isso beneficia os EUA, porque podem receber o petróleo com a dispensa de produzir bens e serviços para serem trocados pelo petróleo; e os produtores de petróleo transformam seus recursos em compra de títulos do tesouro, pois têm capacidade limitada de gastos. Eis os porquês de o dólar ter recebido um apoio e tanto para sustentar seu estatuto.
Concluindo
Desde o pós-guerra, o dólar é a moeda de reserva universal, isto é, aquela que é a mais acumulada (no sentido contábil e não físico) por bancos centrais do mundo inteiro. Já os EUA a emprestam para o mundo inteiro, sem deter estoque de divisas de outros países. Não precisam ser concorrentes em termos de taxa de juros para atrair capitais internacionais. E, paradoxalmente: quanto mais dólares são detidos pelo país estrangeiro, mais ele deve fornecer bens e serviços reais aos EUA pelo montante de dólares acumulado. Sua dívida externa é cotada em dólar, ou seja, na sua moeda nacional; por isso, os EUA não têm propriamente dívida, mas sim “quase dívida” — ou seja, seu “endividamento” é elástico, para não dizer ad infinitum! Esse “endividamento” cresce no “papel”. Gera mais déficit na balança de pagamento. E há mais e mais déficits porque os EUA importam mais bens e serviços do que exportam. O déficit anual é fenomenal. Por outro lado, montanhas (no sentido contábil) de dólares acumulam-se em bancos centrais do mundo inteiro, e nenhum deles pede a conversão em ouro ou em outras divisas. Sem essa demanda de conversão por parte do estrangeiro, o dólar faz ofício de moeda de reserva. Dentro dessa perspectiva, o Estado americano desfruta da confiança e do crédito das elites do mundo inteiro. Isto acontece, reitere-se, porque suas instituições internacionais referidas trabalham, articuladamente, em prol do dólar.
Em suma, verifica-se que o dólar é mais do que moeda por ser um ator político. Ele agrega, em cima da sua força monetária, as forças do aparato governamental americano e as das forças de nações e firmar aliadas, sejam elas grandes ou pequenas. Em suma, o dólar é ajudado por “n” atores e fatores; que recebem como recompensa a “Paz do Dólar”. Sustenta regimes políticos, garante estabilidade, cria espaço seguro de rentabilidade, mas também pune desobedientes, firmas e nações, entre outros. Eis alguns dos elementos que fazem do dólar um ator político e, enquanto tal, detentor de poder político. E que poder!
A importância econômica do poder do dólar expressa-se, pois, sob formas diversas: venda de títulos do tesouro, empréstimos, posição externa (i.e., a diferença entre os investimentos entrando e saindo…). Esse último ponto é apreciado pelo ex-presidente do FED, Alan Greenspan, nestes termos: “[…] a taxa de retorno de mais de US$ 2 trilhões de investimentos diretos dos EUA no exterior era de 11% em 2005, muito abaixo dos juros pagos aos estrangeiros sobre a dívida americana”4. A taxa paga pelos títulos do tesouro americano variava então entre 5 e 6% anuais, o que permitiu, com efeito, o revigoramento do dólar como moeda internacional hegemônica, com especial destaque para o direito de seigniorage5 e a reciclagem dos petrodólares. Com esse expediente, explica David Harvey, os EUA ficaram com “[…] o privilégio monopolista de reciclar petrodólares na economia mundial, trazendo de volta para casa o mercado do eurodólar. Nova York tornou-se o centro financeiro da economia global, o que, associado à desregulação interna dos mercados financeiros, permitiu que a cidade se recuperasse de sua crise e florescesse até o ponto da incrível opulência e do consumo ostensivo da década de 1990”6.
Eis, em suma, alguns dos mecanismos que serviram para “construir” o dólar como poder político.
Notas:Felix Martin. Dinheiro. Bibliografia não autorizada. Portfolio Penguin. 2016, p.141 ↩︎
Ver: Rabah Benakouche. Moeda é poder. Por que constitui questão de Estado? Appris Editora, 2018. ↩︎
Michael Hudson. Super Imperialism. The origin and fundamentals of U.S. World. Pluto Press, 2003. ↩︎
Alan Greenspan. A Era da Turbulência. Rio de Janeiro: Campus, 2007, p. 340. ↩︎
Ou direito de senhoriagem, que é o lucro obtido da diferença entre o material usado para cunhar moeda e o valor de face da moeda criada. ↩︎
David Harley. Novo imperialismo. Rio de Janeiro: Loyola, 2004. p. 57-8. ↩︎
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