sexta-feira, 19 de setembro de 2025

PENSAMENTO FEMINISTA * Partido Comunista dos Trabalhadores Brasileiros/PCTB

PENSAMENTO FEMINISTA
Identitarismo, Feminismo e Luta de Classes.
A Superação da Opressão das Mulheres Só Será Definitiva com a Revolução Socialista

Por Aurelio Fernandes

Vivemos um momento de confusão ideológica. Nas últimas décadas, a esquerda institucional e mesmo setores da esquerda radical têm sido influenciados por correntes que colocam no centro a identidade como eixo da política. O discurso da diversidade, do empoderamento individual e da representatividade ganhou espaço, enquanto a luta de classes é frequentemente tratada como ultrapassada.

É necessário enfrentar esse debate de forma clara: reconhecer que as opressões de gênero, raça e sexualidade são reais e brutais, mas que isoladas da luta de classes, acabam reforçando o sistema que pretendem combater.

Desde o nascimento da sociedade de classes, as elites dominaram não apenas pela força, mas também pela divisão dos explorados. O capitalismo levou isso ao extremo.

· O machismo garante salários menores para as mulheres, sustenta a dupla jornada e naturaliza o trabalho doméstico gratuito.

· O racismo justifica a superexploração dos negros e dos povos periféricos, como no Brasil escravocrata e depois no capitalismo dependente.

· A LGBTfobia empurra milhões para a marginalidade, para a informalidade, para a ausência de direitos, criando camadas ainda mais baratas da força de trabalho.

Essas divisões não são secundárias: são funcionais à acumulação capitalista. Foi assim na escravidão, no trabalho imigrante precarizado do início da República, no trabalho doméstico que ainda hoje recai sobre as mulheres negras no Brasil. Não há capitalismo sem opressão. Por isso, lutar contra machismo, racismo e LGBTfobia sem atacar a raiz de classe é como cortar as folhas e deixar o tronco intacto.

O que vimos nos últimos anos não é um avanço da luta das mulheres, mas um retrocesso disfarçado de conquista. Em vez de atacar as raízes da opressão, o “feminismo” dominante limita-se a pedir uma fatia maior no bolo do capitalismo — um bolo envenenado, feito de exploração, desigualdade e submissão. Enquanto isso, o identitarismo se alastra como ideologia oficial da esquerda institucional, evoluindo a política em uma competição de sofrimento individual, onde cada grupo se isola em sua própria dor, sem olhar para o inimigo comum: o sistema capitalista.

Não podemos negar que a mobilização política em torno dessa lógica identitária trouxe avanços importantes, como a denúncia do feminicídio, o combate ao racismo e a luta por direitos LGBT. Conquistas como a Lei Maria da Penha e as cotas raciais nasceram dessa mobilização. Mas, ao mesmo tempo, o identitarismo mostra sérias limitações:

· Fragmenta a classe: ao separar trabalhadores por identidades, enfraquece a luta comum contra o capital.

· Se contenta com reformas: abre espaço para alguns, mas não muda a vida da maioria.

· É facilmente cooptado: empresas e partidos burgueses usam a bandeira da diversidade para se legitimar sem mexer na estrutura de exploração.

· Homogeneíza diferenças: trata “mulheres” ou “negros” como blocos únicos, escondendo que dentro desses grupos existem classes com interesses distintos.

Entre as correntes identitárias, o feminismo liberal ocupa lugar de destaque. Ele defende que as mulheres podem conquistar igualdade dentro do capitalismo, bastando ampliar direitos, quebrar barreiras e abrir espaço em cargos de poder. Esse feminismo liberal já demonstrou seus limites:

· Origem burguesa: já no sufragismo, as mulheres burguesas buscaram o voto excluindo negras e operárias.

· Igualdade formal: conquistam leis e cotas, mas não alteram as condições materiais da maioria.

· Ascensão individual: transforma emancipação em sucesso pessoal. Fala de CEOs mulheres, mas ignora a massa de trabalhadoras na limpeza, no cuidado e na fábrica.

É inegável que esse feminismo liberal conquistou vitórias parciais. Mas seu limite é evidente: promove a ascensão de algumas, enquanto a imensa maioria das mulheres trabalhadoras continua sofrendo com baixos salários, dupla jornada e violência cotidiana. Esse feminismo olha para cima, não para a base. No Brasil, vemos como esse feminismo se adapta à ordem. Defende a eleição de mulheres, mas apoia governos que atacam direitos sociais. Promove campanhas de empoderamento individual, mas não toca no problema estrutural da divisão sexual do trabalho.

Esse modelo de “luta” não liberta ninguém. Pelo contrário: fragmenta, divide e paralisa. Transforma a indignação legítima das mulheres em relatos emocionais sem programa, sem classe, sem revolução. Fala-se de representatividade como se colocar uma mulher na presidência ou em um conselho de empresa fosse mudar a condição de milhões de trabalhadoras que acordam antes do sol para cuidar dos filhos, limpar casas alheias por dificuldades de miséria e voltarem exaustas para repetir tudo no dia seguinte. Cotas? Sim, são importantes. Direitos formais? Indispensáveis. Mas nenhuma lei, nenhuma cota, nenhum discurso de inclusão podem acabar com a opressão quando a base material dela permanece intocada: a propriedade, a família monogâmica como unidade econômica e o trabalho doméstico não remunerado, desempenhado sobre os ombros das mulheres.

A opressão da mulher não é natural. Não é eterna. Nasceu com a sociedade de classes. Quando surgiu a propriedade privada, a mulher foi expulsa do controle dos meios de produção e confinada ao lar, transformada em reprodutora, cuidadora, escrava invisível. O patriarcado não é um regime que antecede a história — ele é produto da história, resultado da divisão social do trabalho, da separação entre produção pública e reprodução privada. É dentro do capitalismo que essa divisão atinge seu ápice: a mulher é explorada duplamente. No trabalho assalariado, como força de trabalho barata, flexível, abrangente. Em casa, como fonte gratuita de reprodução da força de trabalho — porque quem cuida dos filhos, alimenta o marido, limpa a casa, permite que o operário esteja pronto para voltar à fábrica no dia seguinte?

E o que responde o feminismo liberal a isso? Que a mulher precisa “empoderar-se”. Que deve ocupar espaços. Que deve empreender, liderar, competir. Em outras palavras: que deve virar uma boa capitalista. Esse é o sonho do feminismo burguês — não acabar com a exploração, mas garantir que algumas mulheres possam explorar junto com os homens. É um feminismo que ignora a classe, que trata todas as mulheres como se fossem iguais, como se uma executiva do banco tivesse os mesmos interesses de uma diarista, de uma operária, de uma camponesa. É um feminismo que coloca homens contra mulheres, em vez de unir ambos contra o capital.

É esse mesmo espírito que impregna o identitarismo: a ideia de que a política se resume à afirmação de uma identidade fixa, isolada, desconectada das relações materiais de poder. Ser mulher, ser negro, ser LGBT vira uma categoria imutável, um destino, em vez de uma posição dentro da estrutura de classes. E assim, em vez de fortalecer a unidade da classe trabalhadora, o identitarismo a pulveriza. Cada grupo vai atrás de sua pequena conquista, enquanto a capital segue intacto, adaptando-se, incorporando, lucrando até com a rebeldia.

Mas a verdade é esta: não há emancipação possível dentro do capitalismo. Reformas jurídicas, leis de igualdade, políticas de diversidade — tudo isso pode melhorar condições pontuais, mas não rompe com a lógica do sistema. O capitalismo precisa da opressão da mulher. Precisa do trabalho gratuito no lar. Precisa da divisão sexual do trabalho para manter as tensões baixas, para ter uma reserva de mão de obra flexível, para garantir que a força de trabalho seja reproduzida sem custos para o patrão.

A saída não está nas reformas. Está na ruptura. Está na destruição do capitalismo. E a prova de que outra vida é possível está na história: nos países que ousaram trilhar o caminho do socialismo, a mulher avançou como nunca. Na URSS, nas primeiras décadas após a revolução, foram criadas creches em massa, cozinhas coletivas, serviços de alimentação pública. O trabalho doméstico foi socializado. Os direitos reprodutivos foram garantidos. A mulher entrou massivamente no trabalho produtivo, com apoio estatal. Em Cuba, o sistema de saúde universal garantiu acesso amplo à maternidade, à contracepção e à educação. Foram experiências imperfeitas, atacadas, cercadas, deformadas — mas descobertas, com fatos, que só o socialismo pode criar as condições para a verdadeira liberdade da mulher.

O exemplo soviético é claro: o poder operário não tratou a questão da mulher como algo secundário, nem como uma causa apartada. Tratou-a como parte central da construção de uma nova sociedade. Deram duro combate aos grilhões da escravidão doméstica. Assumiram coletivamente as tarefas de criação dos filhos, de alimentação, de cuidado.

Entenderam que enquanto essas funções permaneceriam privadas, a mulher jamais seria livre. E por isso realizar licença de maternidade paga, creches gratuitas, internas, escolas noturnas — tudo para que a mulher possa participar plenamente da vida política, produtiva e intelectual. Mudaram também o próprio conceito de família: permitiram que os divórcios fossem fáceis, legalizaram o aborto, respeitaram os direitos das mulheres independentemente do casamento. Essas medidas não eram de caridade. Foram parte de um projeto revolucionário para superar a divisão entre o público e o privado, entre produção e reprodução.

No campo a realidade ainda é de extrema opressão. A mulher está obrigada a construir uma família numerosa para que produza e seja explorada nas melhores condições. Vive na miséria, cuida dos animais, alimenta-se de raízes quando a terra falha, e, diante da fome, sai pelas estradas com seus filhos para mendigar. Seu casamento muitas vezes é arranjado, marcado pelo dote, pelo rapto, por tradições reacionárias que o capitalismo não elimina, mas sim reproduz nos meios de comunicação como valores naturais. Essas práticas não são “cultura”, são formas de dominação que se sustentam sobre uma exploração econômica. E só podem ser superadas com uma transformação radical das relações sociais de produção.

Já uma mulher da classe média, embora tenha mais recursos, também é escrava — escrava do lar, da criação dos filhos, do trabalho invisível e não remunerado. Vive sob o peso dos preconceitos sociais e do carreirismo econômico: sua vida é moldada pela busca de um “casamento bem-sucedido”, como se fosse essa a única forma de ascensão. Ela é pressionada a conciliar dois mundos impossíveis: o trabalho formal, competitivo, excludente, e o trabalho doméstico, infinito, invisível. E quando entra no mercado de trabalho, é tratado como mão de obra de segunda categoria — menos paga, mais precarizada, sempre ameaçada de demissão por estar grávida ou precisar cuidar dos filhos.

E é exatamente nesse contexto que o feminismo liberal floresce. Ele oferece ilusões: diz que a solução é o empoderamento individual, a ascensão pessoal, o sucesso profissional. Mas ignora que esse “sucesso” só é possível para uma minoria — e que essa minoria, quando chega lá, não muda nada. Pelo contrário: ajuda a manter o sistema. Porque o que importa para o capital não é quem dá as ordens, mas que haja exploração. Uma mulher no comando de uma multinacional continua explorando mulheres operárias, camponesas, uberizadas, diaristas. Um governo com ministras feministas continua cortando recursos de saúde, educação e assistência social. Um parlamento com mais deputadas votando continua a favor da precarização do trabalho.

As políticas estatais atuais seguem essa mesma lógica reacionária: criar vagas exclusivas para mulheres, banheiros diferenciados, “espaços seguros” — tudo sob o discurso de “proteger os grupos vulneráveis”. Mas isso não emancipa ninguém. Pelo contrário: reforçar a ideia de que a mulher é fraca, dependente, incapaz de lutar. É uma política de assistência, de caridade, que mantém a opressão no lugar. Não ataca o machismo estrutural, não toca na divisão do trabalho, não questiona o papel da família como unidade econômica básica do capitalismo. É uma política que serve para pacificar, para dar uma impressão de mudança, enquanto o sistema segue intacto.

Por isso, a luta pela emancipação das mulheres não pode ser separada da luta de classes. Não é uma causa paralela. É parte central da revolução proletária. As mulheres trabalhadoras não têm futuro com o capitalismo. Tem futuro com a classe trabalhadora. Seu inimigo não é o homem pobre, o operário explorado, o jovem precarizado. Seu inimigo é o mesmo que o de todos os explorados: a burguesia, o latifúndio, o imperialismo, o sistema que lucra com a miséria.

E é por isso que precisamos de um partido revolucionário. Um partido que não se contenta com protestos simbólicos, com declarações vazias, com campanhas midiáticas. Um partido que se organiza com mulheres trabalhadoras, que se forma politicamente, que constrói com elas um programa de poder, de tomada do Estado, de transformação radical da sociedade. Um partido que não ignora as opressões concretas em nome de uma abstração de “classe pura”.

A oposição entre identitarismo e luta de classes não significa negar as opressões específicas. Pelo contrário: significa compreender que elas só podem ser superadas de forma plena quando articuladas à luta geral da classe trabalhadora.

· O identitarismo foca em símbolos; a luta de classes transforma estruturas.

· O identitarismo conquista reformas; a luta de classes constrói revolução.

· O identitarismo divide; a luta de classes unifica.

Reformas podem ser úteis em certos momentos, mas não resolvem o problema. O problema é estrutural. É a ausência de mulheres trabalhadoras na política, nos sindicatos, nas organizações populares — e dentro do próprio partido comunista. Um partido que tenha claro que a tarefa revolucionária é articular as lutas específicas dentro do projeto socialista, reconhecendo opressões, mas colocando-as a serviço da unidade de classe. E isso não se resolve com medidas cosméticas, mas com uma política profunda, de longo prazo, que forma mulheres comunistas, que se preparam para a liderança, que combatem os preconceitos e as opressões, que se integram na luta com programa, com estratégia, com visão de poder.

A liberdade da mulher não será dada. Será conquistada. Será conquistada junto com a queda do capitalismo. Não há outro caminho. Nem ilusões, nem modismos, nem identidades privatizadas. Há apenas uma classe, uma luta e uma revolução. A emancipação das mulheres é socialista — ou não será. O identitarismo isolado não basta. O feminismo liberal não rompe com o sistema. Apenas o feminismo marxista, articulado à luta de classes, aponta a saída revolucionária.

No Brasil, isso significa apoiar as lutas das mulheres negras contra a violência e o desemprego, mas sem cair na armadilha de que o racismo ou o machismo podem ser superados dentro da ordem burguesa. Significa organizar professoras, trabalhadoras da saúde, domésticas e camponesas como parte da luta geral da classe trabalhadora. A tarefa é clara: unir a classe trabalhadora em toda a sua diversidade, reconhecendo as opressões reais, mas combatendo-as dentro de um projeto maior de emancipação social.

E quando falamos em socialismo, não estamos falando de retórica. Estamos falando de creches públicas, de alimentação coletiva, de transporte gratuito, de moradia digna, de saúde e educação universal. Estamos falando de fim do trabalho doméstico privado, de socialização da reprodução, de direito absoluto ao aborto, de liberdade sexual plena. Estamos falando de uma nova humanidade, em que ninguém seja escravo de ninguém — nem no lar, nem na fábrica, nem na rua.

Essa é a luta. E ela exige consciência, organização e consciência de classe. Exige que as mulheres se levantem não como vítimas, mas como sujeitos da história. Exige que se organizem em sua classe, não para pedir migalhas, mas para tomar o poder.

A libertação da mulher começa agora. Começa na resistência diária. Começa na greve, na ocupação, na mobilização. E terminará só quando o último grilhão do capitalismo para quebrado — e com ele, o último grilhão do patriarcado e suas opressões.
Maria Rita Kehl e a crítica aos movimentos identitários

Márcio Moretto Ribeiro, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP 

Uma recente entrevista de Maria Rita Kehl no programa Dando a Real gerou uma intensa polêmica, especialmente após a repercussão negativa de sua crítica ao que chamou de “movimentos identitários”. Em vez de um debate fundamentado sobre suas ideias, parte da resposta que recebeu veio na forma de ataques pessoais, incluindo referências à sua linhagem familiar, o que apenas exemplifica o problema. Se queremos um debate sério sobre os desafios dos movimentos sociais contemporâneos, precisamos rejeitar tanto a instrumentalização pejorativa do identitarismo quanto os ataques pessoais disfarçados de crítica política.

O conceito de identitarismo tem suas raízes nas discussões sobre identidade como ferramenta de mobilização política. Talvez o primeiro texto importante que coloca a questão da identidade como articuladora da luta social tenha sido Combahee River Collective Statement, um manifesto publicado em 1977 por um coletivo de feministas negras. Nele a identidade é reivindicada como um ponto de partida para a ação política, a partir da experiência coletiva de mulheres negras, que não encontravam espaço nem no feminismo branco nem no movimento negro liderado por homens. O coletivo afirma que sua luta política se estrutura não em torno de abstrações universais, mas da afirmação concreta de sua identidade e experiência vivida. Mais recente, Mapping the Margins (1991), talvez seja o texto mais influente nos círculos progressistas nas mídias sociais. Nele, Kimberlé Crenshaw introduz o conceito de interseccionalidade para refletir sobre os limites dessa abordagem: embora a identidade seja uma fonte de poder e organização, ela também pode esconder diferenças internas aos grupos e criar tensões na formulação de políticas mais amplas.

A partir da segunda metade dos anos 1980, os termos “política identitária” (identity politics) e, posteriormente, “identitarismo” começaram a ser empregados com um viés crítico, tanto dentro da própria esquerda quanto por setores conservadores. Diversos autores argumentam que a ênfase excessiva na identidade fragmentava os movimentos sociais, desviando o foco da luta por transformações estruturais, especialmente em relação à desigualdade de classe. Dentro da tradição marxista, a política identitária é criticada por substituir a organização coletiva por uma política de representatividade que, em sua visão, não alterava as bases materiais da opressão. Do outro lado do espectro político, intelectuais conservadores e críticos do multiculturalismo passaram a usar o termo “identitarismo” para denunciar o que consideravam uma fragmentação da sociedade ocidental e um enfraquecimento dos valores democráticos em favor de reivindicações grupais. Assim, o identitarismo se consolidou como um conceito carregado de ambiguidade: para alguns, ele representa um aprofundamento da luta por reconhecimento e direitos, enquanto para outros, trata-se de um desvio da política universalista e da construção de um projeto comum.

Assim, o termo “identitarismo” não me parece adequado para descrever com precisão os movimentos sociais que se organizam em torno de raça, gênero e sexualidade, e muitas vezes mais atrapalha do que esclarece o debate. Ele sugere uma fragmentação artificial da sociedade, ignorando que a própria organização da classe trabalhadora depende da construção de uma cultura proletária, um processo historicamente contingente e socialmente construído. Da mesma forma, os movimentos que lutam contra opressões raciais, de gênero e sexuais não são meras expressões de particularismo, mas respostas concretas a desafios estruturais que marcaram os séculos 20 e 21. Gênero, raça e opressão sexual não são variações culturais superficiais, mas componentes estruturantes da sociedade. Além disso, as identidades negras e femininas são construções sociais, não essências fixas, como bem estabelecido na literatura que fundamenta esses movimentos. Embora existam correntes essencialistas dentro deles, como alguns setores do feminismo radical que disputam as definições de mulher, esses grupos são minoritários. O reconhecimento de uma identidade coletiva — seja como trabalhador, negro ou mulher — é um processo histórico e social que envolve não apenas a percepção subjetiva, mas também a luta por direitos e transformação estrutural. Assim, em vez de fragmentação, esses movimentos representam a continuidade de um processo de organização política que historicamente sempre envolveu a construção de identidades coletivas.

Maria Rita Kehl alerta para o risco de movimentos sociais se fecharem em “nichos narcísicos”, onde a validação interna se torna mais importante do que o diálogo com a sociedade. Esse é, de fato, um fenômeno real e preocupante, mas que extrapola os movimentos ditos identitários e está presente em diversos setores da política e da sociedade. Tanto grupos de esquerda quanto de direita têm desqualificado seus adversários com ataques ad hominem, evitando um debate substantivo. Eu mesmo já tive argumentos desqualificados pela esquerda, sob a acusação infundada de receber dinheiro de fundações internacionais, e pelo MBL, por ser professor da USP. Bolsonaristas recorrem frequentemente a rótulos como “comunista” ou “globalista” para evitar engajar-se com críticas ao governo ou às suas posições políticas. Esse fechamento discursivo não é exclusivo dos movimentos identitários, mas um traço recorrente em diversos grupos políticos e sociais que operam em bolhas cognitivas. A própria academia pode se tornar um espaço de exclusão, onde determinados debates são filtrados por critérios de pertencimento, e não por um exame rigoroso de argumentos. Apontar esse risco é legítimo, mas reduzi-lo exclusivamente aos movimentos identitários apenas reforça o isolamento e dificulta a construção de pontes de diálogo — o que, ironicamente, parece ser a intenção original da crítica feita por Kehl.

Um dos mecanismos de exclusão de atores do debate é uma versão deturpada do conceito de lugar de fala. Originalmente, esse conceito tem uma função legítima no reconhecimento de que diferentes experiências de vida moldam as perspectivas dos indivíduos. No entanto, seu uso deturpado se tornou uma ferramenta de silenciamento. O argumento de que “você não pode falar sobre esse assunto porque não viveu isso” pode levar a um fechamento radical do debate, desqualificando automaticamente qualquer interlocutor que não pertença a determinado grupo. Isso não contribui para a construção de conhecimento, mas para uma fragmentação onde o diálogo se torna inviável.

A crítica feita pelo Mundo Negro exemplifica esse problema. Em vez de responder diretamente aos pontos levantados por Maria Rita Kehl, o site optou por atacá-la pessoalmente, desviando o foco do debate para sua identidade e história familiar. Esse tipo de resposta ignora os argumentos e recorre a desqualificações que não contribuem para o debate de ideias. Além disso, a tentativa de deslegitimá-la foi direcionada a seu avô, o que é um equívoco, pois sua posição política e suas análises não devem ser reduzidas à sua ascendência. Maria Rita Kehl se posiciona como uma mulher branca de esquerda, e seus argumentos devem ser rebatidos e contestados dentro do debate público, levando em consideração sua perspectiva, mas sempre no mérito das ideias, e não por meio de ataques à sua pessoa ou à história de seus antepassados.

O uso do termo “movimento identitário” como locus privilegiado de fechamento cognitivo acaba reforçando o que tenta criticar: a fragmentação das lutas sociais. O fechamento de grupos em nichos isolados é um problema real que deve ser enfrentado, mas tratá-lo como efeito do “identitarismo” fecha mais portas do que abre. Ainda mais prejudicial, no entanto, é o ataque pessoal a Maria Rita Kehl, que, em vez de uma discussão baseada em argumentos, opta por desqualificá-la, desviando o debate do mérito para sua identidade e história familiar. Esse tipo de estratégia não apenas impede um diálogo produtivo, mas também reforça a polarização, inviabilizando qualquer possibilidade de construção de pontes e entendimento mútuo.(JORNAL DA USP)
A luta da mulher é radicalmente oposta ao identitarismo

É preciso diferenciar radicalmente a luta real da mulher trabalhadora, a tradicional luta do movimento operário, o identitarismo feminista, uma política do imperialismo

esde o início da luta das mulheres, impulsionada fundamentalmente pelo movimento operário revolucionário, há uma distinção clara entre a posição da classe operária e o feminismo burguês. Ou seja, essa diferença existe há mais de um século. Os marxistas, que estabeleceram o 8 de março como o Dia Internacional da Luta da Mulher Trabalhadora, sempre alertaram para a necessidade de diferenciar esses dois movimentos.

O feminismo burguês preocupa-se com os direitos políticos da mulher e outras questões de interesse da burguesia. O identitarismo segue a mesma linha. Raramente se vê os identitários discutirem problemas cruciais para a maioria das mulheres, como a falta de creches. Para a mulher trabalhadora, essa questão pode ser uma questão de sobrevivência para si e seus filhos. Já para a mulher burguesa, trata-se de um problema menor, sendo considerados mais relevantes debates como o uso do pronome neutro.

A política marxista sobre a questão da mulher deve ser clara. Após a luta da classe operária como um todo, a questão da mulher é a mais importante. As mulheres representam metade da população mundial e da classe operária. Dessa forma, seus problemas precisam ser tratados de maneira específica. No entanto, o marxismo entende que essa luta não pode ser separada da luta mais ampla da classe trabalhadora.

As mulheres enfrentam desafios que os homens não experimentam, como a maternidade, que entra em conflito direto com o trabalho. Esse é um problema particular, e, por isso, a revolta inicial da mulher tende a ser contra essa situação específica antes de se voltar contra a opressão capitalista como um todo. O mesmo ocorre em colônias, onde os trabalhadores inicialmente se revoltam contra os colonizadores antes de questionar o sistema capitalista.

O identitarismo e a extrema direita

O identitarismo propõe resolver a questão da mulher por meio da repressão estatal, uma abordagem que tem em comum com a extrema direita. Os marxistas, por outro lado, entendem que os problemas são de origem social. O crime, por exemplo, é impulsionado pelas condições sociais, e não será solucionado por meio de maior repressão. Da mesma forma, aumentar as penas para o feminicídio significa delegar à polícia a solução da violência contra a mulher, o que apenas reforça a opressão da classe trabalhadora como um todo.

As duas questões centrais para as mulheres são a maternidade e a igualdade. O identitarismo pouco discute a primeira, o que revela sua natureza burguesa. Enquanto mulheres burguesas têm condições financeiras e empregados para cuidar de seus filhos, as trabalhadoras sem apoio enfrentam enormes dificuldades. Garantir condições para que as mulheres possam ter e criar seus filhos é uma questão central.

O segundo ponto crucial é a igualdade jurídica. Historicamente, muitas leis colocaram as mulheres em uma posição de inferioridade. A luta pelo voto feminino, por exemplo, foi defendida pela classe operária porque ampliaria a participação dos trabalhadores na política.

A questão da repressão, por outro lado, não resolve os problemas das mulheres. O feminismo identitário foca na violência contra a mulher, mas não propõe soluções estruturais. O problema só será resolvido com maior organização política das mulheres. Mulheres ativamente engajadas na política estão mais protegidas contra a violência do que aquelas que permanecem isoladas e individualizadas.

A extrema direita explora questões como feminicídio e estupro para aumentar a repressão estatal. Leis mais severas não protegem as mulheres, apenas aumentam o número de trabalhadores presos. Quanto maior a opressão da classe trabalhadora, maior será a opressão das mulheres.

A emancipação da mulher e classe operária

A emancipação das mulheres está diretamente ligada à revolução proletária. A ideia de que a mulher se libertará sem uma revolução é ilusória. Muitas das conquistas femininas foram resultado direto de revoluções. A União Soviética, por exemplo, foi o primeiro país a garantir igualdade jurídica entre homens e mulheres.

A adoção de reformas favoráveis às mulheres nos países europeus decorreu do medo da burguesia em relação à classe operária, como uma estratégia para evitar revoltas maiores. A luta por reformas deve ser encarada como um meio para alcançar a revolução. Assim, mulheres que buscam verdadeiramente sua emancipação devem enxergar o partido operário e revolucionário como o verdadeiro caminho para essa transformação.

A classe operária é a única força dentro da sociedade capitalista capaz de realizar essa mudança. Em sua luta, confronta diretamente o Estado capitalista e tem condições de derrotá-lo. Atualmente, a força da classe operária é comparável ao poder dos capitalistas, pois é ela a base desse sistema.

Não há mais espaço para confusão entre o movimento operário e o identitarismo. Durante muito tempo, o identitarismo foi denunciado como uma doutrina falsa e pró-imperialista. Hoje, além de reacionário em um sentido geral, ele se tornou uma tendência explicitamente contra-revolucionária.

O identitarismo tem servido de base para apoiar o genocídio em Gaza e para defender políticos responsáveis por essas atrocidades. Seus defensores chegaram ao ponto de acusar o PCO de fascismo por não apoiar Biden e Kamala Harris.

A eleição de Trump tem sido usada como pretexto para justificar um suposto novo período de terror, ignorando os horrores cometidos sob governos anteriores, como a invasão do Iraque e do Afeganistão, o genocídio em Gaza e a perseguição a países como Venezuela e Irã. O discurso contra Trump serve apenas para expor o caráter pró-imperialista e contra-revolucionário da esquerda identitária.

A luta das mulheres não pode ser dissociada da realidade concreta. A defesa da contra-revolução travestida de pautas identitárias não contribui para a emancipação feminina e, na prática, fortalece a opressão capitalista sobre toda a classe trabalhadora. (PCO)
Identitarismo? 
Cinco perspectivas sobre a luta por reconhecimento

Theófilo Rodriugues

As identidades tornaram-se um dos temas centrais da política contemporânea. Artigo examina correntes – do neoliberalismo reacionário à esquerda marxista – e propõe caminhos para superar divisões no campo progressista.

Não há muitas dúvidas de que a questão da luta por reconhecimento de identidades como gênero, raça e sexualidade tem sido uma das mais polêmicas nesse início de século XXI. As formas de interpretá-la, no entanto, são as mais diversas. Correndo o risco de parecer demasiadamente formalista, gostaria de sugerir a existência de ao menos cinco grandes interpretações sobre essa questão das identidades no mundo contemporâneo. Duas delas estão posicionadas na direita do espectro político: o neoliberalismo progressista e o neoliberalismo reacionário. As outras três estão à esquerda: a esquerda liberal, a esquerda decolonial e a esquerda marxista. Vejamos cada uma delas:

Esquerda liberal

Uma primeira corrente é aquela que ignora as questões das identidades, mas que valoriza a redistribuição econômica. Alguns diriam se tratar de uma esquerda vulgar, economicista ou negacionista, mas prefiro adotar o termo esquerda liberal, que é como os seus próprios representantes se definem. Essa esquerda liberal argumenta que a questão das identidades atrapalha a política da esquerda, que deveria priorizar unicamente a questão econômica. Essa esquerda é crítica das identidades, mas é também crítica da perspectiva de classe do marxismo. Na segunda metade do século 20 essa esquerda liberal esteva relacionada com a socialdemocracia.

No cenário mais recente, os principais nomes reprodutores dessa ideia vêm dos Estados Unidos. A filósofa Susan Neiman é um nome que representa bem esse tipo de pensamento político. Neiman sempre rejeitou o marxismo pois, para ela, “Marx era um reducionista de classe”. Diz Neiman:

“No século XIX, isso fazia sentido, mas é uma maneira ridícula de dividir as pessoas no século XXI. As pessoas não fazem as coisas apenas com base em seus interesses de classe, para dizer o mínimo. Marx foi provado errado por dois lados: pelas milhões de pessoas de classe média que apoiaram o socialismo, não por causa de seus interesses de classe, mas por um senso de justiça; e pelas milhões de pessoas da classe trabalhadora que continuaram a votar em interesses reacionários”[1].

Entre outros nomes dessa esquerda liberal do século XXI estão os cientistas políticos Mark Lilla e Yascha Mounk. Contra o que chama de “liberalismo identitário”, Mark Lilla defende aquilo que foi o liberalismo de Roosevelt nos EUA, mais próximo dos sindicatos. Lilla corrobora a crítica ao marxismo feita por Neiman. Diz Lilla:

“As classes sociais são cruciais, porque a distância entre elas é cada vez maior. Mas as classes sociais pós-globalização são outras, têm mais a ver com educação do que com a propriedade dos meios de produção. […] Por isso precisamos de uma visão política que vá além das classes sociais e tenha real impacto nas pessoas. A esquerda não adquiriu um novo vocabulário desde o colapso do marxismo. O foco na cidadania é mais prático, menos idealista”[2].

Neoliberalismo reacionário

Historicamente, o primeiro grande contraponto à hegemonia da esquerda liberal no Ocidente partiu do neoliberalismo reacionário de Margaret Thatcher na Inglaterra e de Ronald Reagan nos Estados Unidos, na década de 1980. Por um lado, esse campo era informado pela agenda do Estado mínimo formulada por Milton Friedman e por Friedrich Hayek e, por outro lado, por um tipo bem próprio de identidade cultural, o conservadorismo cristão.

Para esse neoliberalismo reacionário, ações afirmativas seriam um retrocesso democrático. Donald Trump nos Estados Unidos, Milei na Argentina e Jair Bolsonaro no Brasil expressam bem esse tipo de projeto político nos tempos atuais. Importante que se diga, não é que o neoliberalismo reacionário rejeite a noção de identidades; o que ele rejeita são algumas identidades como as de gênero, raça e sexualidade. Mas ele advoga em favor de outras identidades, como o nacionalismo, o xenofobismo etc.

Neoliberalismo progressista

Na teoria política contemporânea surgiu nos últimos anos um termo bem preciso para definir governos que aliam, por um lado, a economia política do neoliberalismo e, de outro, políticas culturais identitárias, ou seja, políticas de valorização de determinadas identidades sem conexão com as questões classistas ou distributivas: trata-se do “neoliberalismo progressista”. De certo modo, o termo neoliberalismo progressista formulado pela cientista política americana Nancy Fraser é um sinônimo para aquilo que, na década de 1990, o sociólogo britânico Anthony Giddens conceituou como a “terceira via”. A diferença é que Fraser descreve pela chave negativa aquilo que Giddens anunciava em uma chave positiva.

Na prática, a terceira via ou o neoliberalismo progressista são expressões utilizadas para categorizar governos como os de Clinton nos Estados Unidos, Blair na Inglaterra, Schroder na Alemanha, Macron em França ou Fernando Henrique Cardoso no Brasil. Todos esses governos aplicaram o receituário neoliberal na economia ao mesmo tempo em que buscavam narrativas de valorização de minorias como os negros ou as mulheres. Toni Morrison, insuspeita escritora defensora do movimento negro nos Estados Unidos, considerava Bill Clinton o presidente mais negro da história do país. Mais recentemente, Hillary Clinton e Kamala Harris foram identificadas nessa categoria.

No Brasil, FHC nomeou Ellen Gracie, a primeira mulher ministra do Supremo Tribunal Federal ao mesmo tempo em que promoveu a privatização de grandes setores do Estado. Entre os nomes mais recentes da política brasileira, a ministra do Planejamento Simone Tebet parece ser um bom exemplo do que significa o neoliberalismo progressista. Tebet se apresenta como “liberal na economia”, mas também se diz feminista: “Ser feminista é defender os direitos das mulheres. É defender igualdade de salários entre homens e mulheres, é combater a violência contra a mulher. O feminismo, no Brasil, precisa ser entendido como uma pauta de todas as mulheres”, diz Tebet.

Esquerda decolonial

No campo progressista, o extremo oposto da esquerda liberal é provavelmente a esquerda decolonial. Essa esquerda decolonial nasce em fins da década de 1980 a partir da obra do sociólogo peruano Aníbal Quijano. A virada de chave da perspectiva decolonial é a compreensão de que o “sistema mundo moderno” se constituiu a partir da “criação” dessa entidade chamada América no século XVI. O que possibilita a modernidade e o capitalismo é a colonialidade do poder exercida pela Europa sobre a América.

A esquerda decolonial é profundamente crítica do eurocentrismo, inclusive do eurocentrismo marxista, preferindo dialogar mais com o marxismo de Mariátegui.

Do ponto de vista econômico, ela é desconfiada das ideias de desenvolvimento propostas pela esquerda liberal, por acreditar que esse desenvolvimentismo promove o consumismo e ignora a relação do homem com a natureza e mesmo a relação entre os homens nas comunidades periféricas. Por essa razão, essa esquerda decolonial prefere o projeto político do “Bem Viver”, como descrito por Alberto Acosta[3].

Do ponto de vista social, trata-se de uma valorização das questões de raça e gênero para a compreensão da opressão na América Latina. As cientistas sociais argentinas María Lugones e Rita Segato estão entre as principais porta vozes desse projeto que interpretação das múltiplas opressões de gênero e raça da colonialidade do poder na América.

Esquerda marxista

O reconhecimento da identidade sempre esteve presente entre os marxistas, por sinal, desde sua origem. Inspirado em Hegel, Marx, na Miséria da Filosofia de 1847, já apontava para a diferença entre a “classe em si” e a “classe para si”, ou seja, a distinção entre a condição de classe e a consciência de classe. A organização e a luta seriam as responsáveis pela transformação qualitativa da identidade de classe[4].

Mais ou menos ao mesmo tempo que Marx, mas caminhando por outro caminho, Engels também percebeu a importância da questão da identidade. Ao investigar a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, o revolucionário alemão percebeu que havia ainda uma outra identidade, para além da classe, que marcava os que mais sofriam os impactos socioambientais do capitalismo no país. Eram, em sua maioria, os imigrantes irlandeses que formavam a parcela mais pauperizada dos trabalhadores na Inglaterra. Sinal de que o fundador do marxismo já sugeria lá atrás o papel relevante das identidades na compreensão da exploração[5].


O mesmo Engels, em seu clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado, sustentou que “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher no casamento monogâmico, e a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo sexo masculino”[6].

Pela perspectiva do gênero, o mesmo poderia ser encontrado nas obras de autoras como Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. Diferentemente do feminismo liberal, o feminismo marxista dessas autoras é aquele que compreende a luta das mulheres inserida na luta de classes. Luxemburgo, por exemplo, exige que a mulher proletária “vá à luta pela libertação do gênero das mulheres e do gênero humano do horror da dominação do capital”[7]. De certo modo, recuperando a formulação do jovem Marx, o feminismo marxista é aquele que propõe não apenas a emancipação política, mas também a emancipação humana[8].

Como bem registra a socióloga Mary Garcia Castro, uma das principais representantes desse feminismo marxista no Brasil, “um feminismo emancipacionista aposta na importância de um partido político de corte marxista-leninista, mas que seja classista, anti-patriarcal, inclusive no que concerne às relações sociossexuais no partido e questões postas pelos movimentos LGBTQ+, e consciente da importância estrutural da raça”[9].

O marxista italiano Domenico Losurdo percebeu bem essa questão quando observou que em Marx não existe apenas uma luta de classes, mas sim lutas de classes no plural. Isso significa dizer que “o plural não quer denotar a repetição do idêntico, o contínuo recorrer à mesma fórmula da mesma luta de classes; não, o plural remete à multiplicidade das configurações que a luta de classes pode assumir”[10].

Nos tempos atuais, essa esquerda marxista – uma parte dela prefere ser identificada como pós-marxista ou pós-socialista para se diferenciar do velho marxismo que supostamente daria pouco valor ao tema das identidades, mas isso não altera o argumento – é aquela que promove de forma ainda mais clara a síntese entre a luta por reconhecimento cultural e a luta por redistribuição econômica. Essa esquerda marxista compreende que a sociedade capitalista é estruturada por classes sociais e que a dinâmica entre essas classes é baseada na exploração. Ao mesmo tempo, reconhece que outras dimensões da exploração como gênero e raça também precisam ser combatidas.

Certamente há nuances entre os muitos autores que se encontram nessa categoria, mas entre eles poderíamos mencionar o filho de paquistaneses que nasceu nos EUA Asad Haider, as americanas Angela Davis e Nancy Fraser, a belga Chantal Mouffe, as italianas Cinzia Arruzza e Silvia Federici e a indiana Tithi Bhattacharya.

Caminhos para uma síntese de esquerda do século XXI

Importante advertir que toda classificação privilegia tendências e muitos dos autores mencionados podem transitar em diferentes categorias.

Como se vê, o leque de interpretações sobre a questão do reconhecimento das identidades é bem amplo. Talvez seja justamente essa diversidade a causa de tanta confusão na esfera pública. A solução para o seu entendimento não passa pela invisibilização ou rejeição discriminatória de qualquer uma delas, mas sim pela visibilidade dos interesses em disputa.

Para o campo da esquerda, mais importante do que implodir pontes entre as três diferentes interpretações de mundo mencionadas, é construir diálogos e sínteses entre elas. Afinal de contas, sectarismo e dogmatismo nunca fizeram revolução.

Notas:



[3] ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Elefante, 2016.

[4] MARX, Karl. Miséria da Filosofia. São Paulo: Boitempo, 2017.

[5] ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008.

[6] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 68.

[7] LUXEMBURGO, Rosa. A proletária. In: LUXEMBURGO, Rosa. Textos escolhidos. Volume 1. São Paulo: Ed. Unesp, 2018, p. 496.

[8] MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

[9] CASTRO, Mary Garcia. Desafios ao marxismo e ao feminismo emancipacionista em tempos de barbárie neoliberal. In: MARTUSCELLI, Danilo Enrico (org.) Os desafios do feminismo marxista na atualidade. Chapecó: Coleção marxismo21, 2020. Disponível em: https://soscorpo.org/wp-content/uploads/Os-desafios-do-feminismo-marxista-na-atualidade-2020-marxismo21-2.pdf

[10] LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015.
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FEMINISMOS

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